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  • Foto do escritorHugo Aguiar

Entrevista com a Ialorixá Mãe Baiana

Atualizado: 25 de out. de 2019

Confira a elucidativa entrevista com Ialorixá Mãe Baiana, uma vigorosa personalidade que luta com garra e confiança pelo fim da intolerância religiosa.


Mãe de Santo no Ilê Axé Oyá Bagan, em Brasília, coordenadora da política de promoção e proteção da diversidade religiosa, junto ao governo do Distrito Federal, e escritora, Mãe Baiana conversa com o Consciência Ecumênica a respeito do Candomblé, da importante tarefa de ser Ialorixá, do cenário de intolerância religiosa, ainda presente em nossa sociedade, e de suas bandeiras e lutas como a militância de terreiro. Em seu livro Chão e Paz, lançado em 2018, narra sua história de persistência e de busca pela sua vocação, alcançando o patamar de uma das mais expressivas representantes do Candomblé, no pais, representando o Brasil e sua fé internacionalmente.


A crença que defende e vivencia consiste em uma religião afro-brasileira, crente em um Ser Supremo e nas forças da natureza, cuja personificação é representada por ancestrais divinizados. Oriunda da tradição dos escravizados, vindos de várias regiões africanas, em especial da Nigéria e do Benin, o Candomblé conta com diversas nações, com suas divindades, atabaques, cantos e liturgia própria. No Brasil, a tradição do Candomblé encontra-se atrelada a cultura do país, cantada por expoentes da música nacional, como Clara Nunes e Vinícius de Moraes, presente na literatura, na dramaturgia, na culinária e na arquitetura. Sobre o Candomblé e sua tradição e legado, confira a seguir a esclarecedora entrevista de Mãe Baiana.


“Ser mãe de Santo é muito difícil”, declaração que abre o título “Mãe”, em seu livro Chão e Paz, lançado em 2018. Como foi o chamado para assumir tamanha responsabilidade?


O chamado veio desde que nasci, mesmo que não tenha percebido quando criança. Só na fase adulta é que vamos entendendo a vida, e seus conteúdos acabam por gerar o entendimento. E, por meio deste entendimento, vamos compreendendo o chamado. As pautas que vão chegando às nossas mãos são justamente o que tem dentro de nós, e o leão que estava adormecido vai acordando conforme os desafios que nos chegam. A partir de então, vamos percebendo nossa missão, e não tem para aonde correr.


Eu tentei vários lugares, outras religiões, mas meu coração e minha alma não foram preenchidos. Não estava bem, não estava satisfeita, e, quando chega nesse ponto, temos de voltar, ir ao início de tudo e rever, devagarzinho, nossa história. Foi o que aconteceu comigo, voltei, revisitei minha trajetória e quando passei pela religião percebi que meu lugar é onde estou hoje.


Quando temos o dom de atender o chamado, o fardo fica leve. Se quiser insistir em algo que não é seu, forçado, não adianta. Eu encontrei o meu lugar, minha fortaleza, minha bengala, minha sustentação, e meus Orixás me fortalecem frente às dificuldades.


Quais são os desafios e as alegrias dessa tarefa tão nobre?


O maior desafio é carregar a responsabilidade de ser Mãe de Santo. As pessoas já me olham quando algo acontece e esperam uma atitude. Tudo é Mãe Baiana! O desafio é conduzir essa expectativa com sinceridade, com a alma cheia de alegria. Tenho de lidar com a confiança que é depositada em mim. Mas, na verdade, não são desafios, encaro com muita naturalidade.


E a alegria maior é poder contribuir. Eu me cobro muito, logo de manhã, quando acordo já me pergunto: o que foi que eu não fiz? O que eu fiz pela metade? Então minha maior alegria é poder contribuir e contribuir direito. Não sei fazer tudo, mas estou sempre procurando, perguntando, correndo atrás, contribuindo. E só de se colocar à disposição para contribuir já é muito.


A senhora afirmou que o Candomblé lhe havia ensinado muito. Quais são os ensinamentos principais candomblecistas e umbandistas na formação de seus fiéis?


O principal ensinamento é o respeito. Tanto o Candomblé quanto a Umbanda me ensinaram muito a ter respeito. Respeito pelas pessoas, pela diversidade, pelos religiosos. Temos de respeitar a escolha das pessoas, do segmento religioso que escolheram, da fé, do credo. Para mim, é um ensinamento universal.


As religiões de matriz africana cultivam um respeito muito grande para com os mais experientes. Qual o espaço da ancestralidade no Candomblé?


A ancestralidade para nós é tudo. É quem comanda e quem me faz estar aqui hoje. Meus ancestrais, talvez inconscientemente, deixaram um pedacinho da ancestralidade junto com as palavras responsabilidade e respeito, para que eu desse continuidade à tarefa que eles começaram. Terei de dar conta dessa missão, de me esforçar para cumprir com essa responsabilidade. A ancestralidade dentro do culto de matriz africana é carregar o que nos deixaram: o amor, os ensinamentos, o respeito, a cultura, que é linda e de todos.


Minha avó me passou muito da ancestralidade, do que sou e do que aprendi. Ela teve um significado muito grande para eu estar aqui hoje. E o incrível é como uma criança consegue aprender tanta lição com tão pouca idade, como foi o meu caso. Eu atribuo isso a nosso modo de agir de então, que, no meu ponto de vista, era perfeito, se comparado ao mundo atual. Minha avó ensinava-me pelo exemplo, de uma forma que nunca mais esqueci. E a ancestralidade, os ensinamentos, se bem passados, vêem à tona quando adultos, quando temos de lidar com as situações, de colocar a mão na massa.


O Candomblé, assim como a Umbanda, tem o sincretismo religioso em sua história. Qual o contexto histórico em que se concebeu essa fé sincrética?


Os escravizados, nossos ancestrais, chegaram ao Brasil, por meio da captura, e aqui, desmantelados, tinham de trabalhar para comer, para ter onde morar, e tiveram de encontrar o modo de sobreviver. Mas, embora sem nada de material, trouxeram em suas capangas a ancestralidade, os ensinamentos e a religiosidade, o que lhes auxiliaram na sobrevivência. Para conseguirem se expressar, eles tiveram de resistir. E a resistência teve como um de seus começos o sincretismo religioso. A Igreja Católica juntamente com o Estado e com os senhores não permitiam manifestações religiosas de matriz africana, que se expressa por meio de movimento, de dança, de louvor, do batuque. Logo, tiveram de criar meios de resistir, de poder adorar seus Orixás.


O sincretismo, nesse contexto, foi a maneira de resistência, de manter a ancestralidade. Iansã, por exemplo, era representada pela Santa Bárbara, que também tem uma personalidade de guerreira. Rezava-se para a santa, mas pensava-se em Iansã. Assim, podia-se professar suas crenças sem a perseguição. O sincretismo foi sinônimo de resistência, uma forma inteligente de manter a ancestralidade e de sobreviver àquele ambiente extremamente hostil.


O resistir sempre foi um verbo muito recorrente nas religiões de matriz africana. Poderíamos ainda entender o terreiro como espaço de resistência para seus fiéis dos dias atuais, especialmente para os jovens?


O terreiro é espaço, sim, de resistência tanto para os jovens quanto para as crianças. Hoje temos uma luta para que as crianças, por exemplo, possam expressar sua fé, ter a liberdade de usar seus fios de conta, no dia do seu santo. Para a juventude, o terreiro tem a função de formar, forma-se a personalidade do jovem, que tem no seu Orixá, que lhe é afim, a expressão do exemplo a se seguir. É um momento de aprendizado, de formação juvenil. Eles aprendem a se comportar, a dar benção à mãe e ao pai, a respeitar. Os jovens do Candomblé e da Umbanda não nos dão trabalho, pois têm essa formação, esse respeito, esse encontro. No terreiro e nos lares umbandistas e candomblecistas, mãe, pai e filhos compartilham os momentos e interagem-se com os Orixás.


Ao estudar sua história, deparamo-nos com uma frase que define muito sua trajetória: “não estou nesta vida de brincadeira”. Há muitas bandeiras, entre as quais a militância de terreiro, que a senhora defende com firmeza. O que motiva sua luta?


Não sentarei na cadeira de meu Orixá para brincar de santo. Eu não fui chamada para brincar! Eu fui chamada pelo meu Orixá e preciso cumprir, respeitar, atuar e caminhar dentro do escopo de minhas responsabilidades. Não sou movida por dinheiro, não é riqueza, não vim no mundo para ser uma mulher rica. Eu vim para ser quem eu sou, e se tivesse de voltar no mundo, uma escolha, escolheria tudo do mesmo jeito, a mesma mulher, a mesma baiana, a mesma mãe e a mesma mulher de Iansã. Não vim em um corpo errado, em uma mente errada. Vim para cumprir as atribuições que me são conferidas, para ser quem sou hoje! Isto me move: a responsabilidade.


A Casa de Santo Ilê Axé Oyá Bagan, que já foi alvo de incêndio criminoso, é definida pela senhora como local de resistência contra a intolerância religiosa. Como a senhora define o terreiro no contexto da intolerância?


A nossa casa foi me dada pelo meu Orixá, então eu preciso ser resistente. Se me foi dada pelo Orixá, podemos considerar como um quilombo urbano. E o quilombo é, sim, um lugar de resistência, onde, no passado, os negros se refugiaram, se abraçaram, e tiveram ali unidos, para protegerem-se do sol, do calor, da chuva e do vento. E assim é o Ilê Axé Oyá Bagan. E vou resguardá-lo, porque é um local de força, principalmente para as pessoas que ali chegam, muitas vezes feridas, machucadas, cansadas e com fome. Eu cuido daquele espaço como se fosse um bebê, e não pode morrer, porque é sagrado. Minha filha, a presidente, e eu lutamos juntas por nossa Casa, e a resistência dá-se de todas as formas, de todos os lados e caminhos.


O Distrito Federal é pioneiro na elaboração de programa para promover direito à liberdade de culto e crença, além de contar com delegacia especializada em crimes de intolerância religiosa. Qual o papel da militância de terreiro nessas conquistas e qual a estratégia para combater a intolerância?


Quando incendiaram o terreiro, em 2015, o então governador do Distrito federal esteve no local e me perguntou o que ele poderia fazer para levantá-lo novamente. Então eu disse: aquiete-se, que, aqui, meus santos vão levantar tudo. Mas sugeri a ele que em cada delegacia do Distrito Federal tivesse uma pasta, um agente especializado, para tratar dos casos de intolerância religiosa. O governador achou uma ótima ideia, e fez mais, criou uma delegacia específica para o tema. Em menos de dois meses a delegacia estava inaugurada e é atuante. Eu me sinto mãe desse projeto. Depois dessa ação governamental, os casos de intolerância no Distrito Federal diminuíram 90%. Em um Estado em que o governo aparece tutelando todos os segmentos, que adiciona o “s”, incluindo efetivamente todos, a sociedade é mais feliz, pois todos se sentem protegidos. Os intolerantes, nesse governo, pensarão duas vezes antes de agir.


A criação de políticas públicas é essencial para se combater a intolerância. O programa do Distrito Federal é um passo nessa direção. Colaborarei coordenando a política de promoção e proteção da diversidade religiosa, cargo conferido pelo governador e pelo secretário de justiça. Buscarei criar políticas públicas, coordená-las, protegê-las e promovê-las. Atuarei em nome de todos os segmentos religiosos, sem distinção, o que considero exemplar: uma mãe de santo coordenando uma pasta da diversidade.


Uma mensagem para os leitores do Consciência Ecumênica?


Eu busco muito a cultura da paz. Eu sonho, em um dia, acordar e perceber que estamos vivendo a cultura da paz e não a cultura da guerra religiosa. Cada um de nós tem a responsabilidade de procurar e de achar em algum cantinho da nossa vida, da nossa cidade, do nosso estado, do nosso país um pouquinho de paz, para tê-la e para transmiti-la. É uma responsabilidade nossa. Se nós incentivarmos a violência, conviveremos com a violência. Se nós incentivarmos a paz, nós a encontraremos. Precisamos semeá-la. E é essa semente que carrego, aonde passo vou jogando, e tenho certeza que vai brotando. ■


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